domingo, 1 de novembro de 2009

Karuna, Solidariedade

Este ano (2009),durante o Retiro de 21 Dias em Plum Village, Thich Nhat Hanh falou de novo que a tradução da palavra 'karuna' por compaixão (ele se refere naturalmente ao inglês, 'compassion', de onde saem a maioria das nossas traduções) não era uma boa tradução. Em muitos dos seus livros podemos encontrar passagens críticas à utilização dessa palavras. No livro "Ensinamentos Sobre o Amor" ele nos diz explicitamente:

"O segundo do aspecto do amor verdadeiro é karuna, a intenção e a capacidade de aliviar e transformar o sofrimento e abrandar as tristezas. Em geral, a tradução de karuna é compaixão, mas isso não está inteiramente correto. 'Compaixão' compõe-se de 'com' (junto com) e 'paixão' (sofrimento). Mas não precisamos sofrer para eliminar a dor de outra pessoa. Os médicos, por exemplo, podem aliviar a dor de seus pacientes sem que eles padeçam da mesma doença. Se sofrermos muito, poderemos ficar arrasados e incapazes de ajudar os outros".

Outros tradutores, os que são budistas pelo menos, também sentem o mesmo incômodo ao usar a palavra compaixão, principalmente devido ao fato de ela ser carregada de conotações cristãs tradicionais ligadas à piedade, etc. Além disso, a palavra compaixão carrega um sentido altamente dualista que fere a unidade budista original, isolando o sujeito (aquele que age com compaixão) e o objeto (aquele que interage na ação), fazendo-nos esquecer de que ambos intersão, segundo verbo cunhado por Thây (interbeing/interser), que ambos são interdependentes. Ou, para seguir o método usado no Sutra do Coração, ninguém dá, ninguém recebe, nem compaixão, nem não-compaixão...

Por isso, no meu blog dedicado a Thây (interserblog.blogspot.com) e nos textos traduzidos por mim, utilizo a palavra 'solidariedade' no lugar de 'compaixão'.

Uma senhora certa vez criticou o meu uso dessa tradução dizendo que poderia sentir compaixão por um assassino, mas jamais sentiria solidariedade. Essa crítica só fez acender mais ainda um alerta para o uso indevido da palavra "compaixão" em um contexto não-cristão.

Tenho percebido que quando alguém diz que sente compaixão por alguém que comete um crime, mesmo que horrendo, na verdade ela está pensando "Que Deus tenha piedade dessa alma, eu não posso fazer nada!". Mas o Budismo não encara dessa maneira, o budista estende a mão a essa pessoa, por que sabe que ela está sofrendo e não consegue lidar com o seu sofrimento. E essa pessoa pode qualquer um mesmo, eu, você, Hitler, Thich Nhat Hanh, o casal Nardoni, George Bush, a moça que matou os pais, um estuprador e assim por diante.

Nós, como praticantes budistas sabemos que nós mesmos carregamos em nossa consciência essas sementes que espalham terror, medo, violência, raiva, guerra e morte. Mas também sabemos que carregamos ao mesmo tempo as sementes de amor, fraternidade, bondade, liberdade, esperança e felicidade que devemos cultivar. Ao sermos compassivos ou solidários temos consciência de que os outros estão em nós tanto quanto estamos neles e que, portanto, não existe nem sujeito nem objeto da solidariedade.

Por outro lado, a palavra 'solidariedade' se encaixa perfeitamente na definição budista tradicional de 'karuna'. Solidariedade vem da palavra 'solidário', que por sua vez vem da palavra latina 'solidu' (sólido). É interessante notar que é raro alguém se lembrar que a palavra solidariedade tem a mesma raiz de solidez – e me parece óbvio que a solidariedade só pode ser praticada se houver solidez. Uma palavra que se baseia em solidez e compartilha, inclusive, a mesma raiz, em minha opinião, só pode ser a palavra mais adequada para traduzir a palavra 'karuna'. Ela tem a vantagem ainda de não ser trazer em si sentido religioso intrínseco algum.

Em todos os seus textos e palestras, Thây sempre enfatiza o fato de que para uma ação ser realmente “compassiva”, ou seja, ser impregnada por karuna, é preciso solidez e estabilidade – mesmo na curta citação acima isso é claro. Solidez é necessária para que ocorra a transformação do sofrimento, a libertação, a felicidade. Não podemos simplesmente nos lançar a ajudar os outros, temos que cultivar a estabilidade e a solidez em nós mesmos para não sermos arrasados pela dor e sofrimento dos outros, para sermos capazes de ajudá-los a transformar seu sofrimento tal como fizemos nós mesmos. Se não formos estáveis e sólidos na nossa ação perderemos contato com a realidade, com o momento presente, e a unidade entre nosso corpo e nossa mente, a unidade entre os três tipos de ação (da fala, do corpo e da mente) se rompe e nos lança no futuro ou no passado.

No texto Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, o filósofo André Comte-Sponville nos diz:

“... ser solidário é pertencer a um conjunto in solido, como se dizia em latim, isto é, “para o todo”. Assim devedores são ditos solidários, na linguagem jurídica, se cada um pode e deve responder pela totalidade da soma que tomou emprestada coletivamente. Isso tem suas relações com a solidez, de que a palavra provém: um corpo sólido é um corpo em que todas as partes se sustentam”.

Pessoalmente, acho a palavra 'solidariedade' muito inspiradora. Mas creio que a maior contribuição de uma tradução desse tipo é recuperar uma diversidade de significados que se perdem quando traduzimos algo. Muitas expressões no budismo são traduzidas das mais diferentes maneiras (smrti, por exemplo, pode ser plena consciência, plena atenção, atenção, vigilância) o que dá a elas a chance de saber que nessa diversidade de significados se pode entrever o seu sentido real. Entretanto a palavra 'karuna' continuo soterrada sob a tradução única de 'compaixão' e, no fim, essa unicidade acaba por desfigurar e contaminar seu sentido original com o sentido que essa palavra tem em outras religiões como a cristã, por exemplo.

Talvez essa não seja a melhor solução, talvez fosse melhor recorrer ao um neologismo. Mas acho que é melhor usar expressões consagradas pelo uso do que criar novas palavras que podem criar mais confusão e dar um ar demasiado intelectual aos textos que, essencialmente, têm finalidade prática e não especulativa.

Por essas e outras, ao contemplar as imagens de Avalokiteshvara, que mostram um bodhisattva saudável, leve, estável, fulgurante, pleno de energia, cheio de braços e mãos, não consego ver nele a imagem da compaixão. Acho muito mais fácil ver solidariedade. Por isso quando o apresento aos meus amigos que não são budistas digo "este é Avalokiteshvara, o Bodhisattva da Grande Solidariedade".

Nenhum comentário: